Inspirações

Não existe molhado igual ao pranto


Zé Ramalho


Não se escuta na terra quem for santo

Não se encobre um só rosto com dois mantos

Não se cura do mal quem só tem pranto

Nenhum canto é mais triste que o final
Não se ouve nos ares nenhum canto
Nem nos cantos da noite nenhum grito
Não se mata o que é feio com o espanto 
Não se chora ou agora o que é bonito
Não se pode entender sabendo pouco
Não se dá nota aguda estando rouco
Não se encontra o que é duro aonde é oco
Nem silêncio onde só existe o grito




The Hollow Men
I

Nós somos os homens vazios

Somos os homens de palha

Apoiados uns nos outros

A parte da cabeça cheia de palha. Ai
As nossas vozes foram secas e quando
Juntos sussurramos
São serenas e sem sentido
Como vento em erva seca
Ou pés de ratos sobre vidro partido
Na secura da nossa cave
Molde sem forma, tonalidade sem cor,
Força paralisada, gesto sem movimento;
Os que cruzaram
Com os olhos certeiros, para o outro reino da morte
Lembram-se de nós - quem sabe - não de 
Violentas almas perdidas, mas somente
De homens vazios
Homens de palha.

II
Olhos que não ouso encontrar em sonhos
No imaginário reino da morte
Esses não aparecem:
Aí, os olhos são
Luz do sol numa coluna quebrada
Aí, uma árvore balouça
E há vozes
No cantar do vento
Mais distantes e mais solenes 2
Que uma estrela em fuga
Sem estar mais perto
No imaginário reino da morte
Que eu use também
Disfarces deliberados
Pêlo de rato, pele de corvo, estacas em cruz
Numa seara
Portar-me como o vento se porta
Mais perto não,
Não esse encontro final
No reino crepuscular

III
Esta é a terra morta
Esta é a terra de cactos
Aqui as imagens de pedra
Erguem-se, aqui recebem
Em súplica a mão do morto
Na fuga de uma estrela que cintila.
Será mesmo assim
No outro reino da morte
Acordar sozinho na hora em que
Trememos de ternura
Os lábios capazes de um beijo
Formam preces a pedras quebradas.

IV
Os olhos não estão aqui
Não há olhos aqui
Neste vale de estrelas a morrer 3
Neste vale vazio
Este queixo quebrado dos nossos reinos perdidos
Neste último dos lugares de encontro
Em conjunto tacteamos
E evitamos a fala
Amontoados nesta praia do túmido rio
Sem ver, a menos que
Reapareçam os olhos
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino crepuscular da morte
A esperança só
De homens ocos.



Ismália


Alphonsus de Guimaraens
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...



Psicologia de Um Vencido
Augusto dos Anjos
"Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e á vida em geral declara guerra,


Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!"

Dom Casmurro 
Machado de Assis
"Aí vindes outra vez em quietas sombras."
Discurso 
 Menotti Del Picchia
 "Queremos luz, ar, ventiladores, aeroplanos, reivindicações obreiras, idealismos, motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho, na nossa Arte! E que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e sonhar, na era do "jazz-band" e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena!"




Abaporu
 Tarsila do Amaral





Litania dos Pobres
 Cruz e Sousa


"Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear nas portas.

Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.

Faróis a noite apagados
Por ventos desesperados.

Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos Espaços.

Mãos inquietas, estendidas
Ao vão deserto das vidas.

Figuras que o Santo Ofício
Condena a feroz suplício.

Arcas soltas ao nevoento
Dilúvio do Esquecimento.

Perdidas na correnteza
Das culpas da Natureza.

Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!

Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.

Imagens dos deletérios,
Imponderáveis mistérios.

Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.

Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.

Fantasmas vãos, sibilinos
Da caverna dos Destinos!

O pobres! o vosso bando
É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo...

Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.

Nos areiais e nas serras
Em hostes como as de guerras.

Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.

Como avalanches terríveis
Enchendo plagas incríveis.

Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.

Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.

Perde-se além na poeira,
Das Esferas na cegueira.

Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.

Como torres formidandas
De torturas miserandas.

E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.

E de tal forma se arrasta
Por toda a região mais vasta.

E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.

E de tal forma já cresce
O bando, que em vós parece.

Ó Pobres de ocultas chagas
Lá das mais longínquas plagas!

Parece que em vós há sonho
E o vosso bando é risonho.

Que através das rotas vestes
Trazeis delícias celestes.

Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho...

Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.

Que as vossas almas trevosas
Vêm cheias de odor das rosas.

De torpores, d’indolências
E graças e quint’essências.

Que já livres de martírios
Vêm festonadas de lírios.

Vem nimbadas de magia,
De morna melancolia!

Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.

Balanceadas no letargo
Dos sopros que vem do largo...

Radiantes d’ilusionismos,
Segredos, orientalismos.

Que como em águas de lagos
Bóiam nelas cisnes vagos...

Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.

E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.

Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando é de eleitos.

Que vestes a pompa ardente
Do velho Sonho dolente.

Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores."



 

Versos Íntimos
Augusto dos Anjos

"Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!"

Nenhum comentário:

Postar um comentário